Em um momento de crescente tensão diplomática entre Brasil e Estados Unidos, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se uniu a outros quatro líderes progressistas da América Latina e da Europa para lançar um manifesto contundente em defesa da democracia e contra o avanço de discursos autoritários. O documento, intitulado “Democracia Sempre”, foi publicado na véspera da Reunião de Alto Nível realizada nesta segunda-feira (21) em Santiago, no Chile.
Assinado por Lula, Gabriel Boric (Chile), Gustavo Petro (Colômbia), Yamandú Orsi (Uruguai) e Pedro Sánchez (Espanha), o texto denuncia a erosão das instituições democráticas, o crescimento da desinformação nas plataformas digitais e o aumento das desigualdades sociais como ameaças centrais à estabilidade política global.
“Não cabe o imobilismo nem o medo. Defendemos a esperança”, afirma o manifesto, que propõe enfrentar os desafios da democracia com mais democracia, e não com retrocessos.
Crise com os EUA: pano de fundo do manifesto
A publicação do documento ocorre em meio a uma escalada de tensões entre o governo brasileiro e o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Na última semana, Trump anunciou a imposição de tarifas de 50% sobre produtos brasileiros, além de suspender vistos de ministros do Supremo Tribunal Federal, como Alexandre de Moraes, em retaliação à operação da Polícia Federal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Durante o evento no Chile, Lula evitou comentar diretamente a crise comercial com os EUA, mas deixou claro seu posicionamento ao defender a soberania nacional e a independência dos Poderes.
“No Brasil, ninguém está acima da lei. A liberdade de expressão não pode ser confundida com licença para incitar a violência ou atacar a democracia”, declarou Lula em seu discurso.
Democracia como bem comum
A reunião “Democracia Sempre” reuniu chefes de Estado, representantes da sociedade civil, acadêmicos e organizações sociais. O encontro teve como eixos centrais o fortalecimento do multilateralismo, a redução das desigualdades e o combate à desinformação — temas que, segundo os líderes, devem pautar a próxima Assembleia Geral da ONU.
O presidente chileno Gabriel Boric, anfitrião do evento, destacou a importância de uma frente internacional progressista diante do avanço da extrema direita em diversas partes do mundo.
“A democracia não pode ser apenas uma palavra bonita em discursos. Ela precisa ser vivida, protegida e renovada todos os dias”, afirmou Boric.
Regulação das plataformas digitais: ponto de tensão com Trump
Um dos pontos mais sensíveis do manifesto é a defesa da regulação das plataformas digitais. Lula e os demais líderes argumentam que a desinformação e os discursos de ódio online têm minado a confiança nas instituições e alimentado o extremismo.
Essa posição contrasta diretamente com a postura de Trump, que tem criticado abertamente a tentativa do governo brasileiro de regulamentar as chamadas “big techs”. Em pronunciamentos recentes, o presidente norte-americano chegou a acusar o Brasil de censura e atacou o sistema de pagamentos Pix, chamando-o de “ameaça à liberdade econômica”.
Sul Global se articula
Para analistas internacionais, o manifesto representa mais do que uma resposta simbólica. Trata-se de uma tentativa concreta de reposicionar o Brasil e seus aliados como protagonistas na defesa de uma ordem internacional baseada na cooperação e no respeito às instituições democráticas.
O embaixador chileno Jorge Heine, em entrevista ao jornal O Globo, afirmou que “baixar a cabeça para Trump é a pior estratégia”. Segundo ele, a ofensiva tarifária dos EUA é uma forma de chantagem política, especialmente diante da aproximação do Brasil com os BRICS e da atuação independente do Judiciário brasileiro.
“Trump atirou na separação dos Poderes no Brasil. Exigir que Lula interfira no STF é exigir o impossível”, disse Heine.
Participação cidadã e reformas estruturais
O manifesto também convoca a sociedade civil, juventudes, centros de pesquisa e movimentos sociais a se engajarem na defesa da democracia. Os líderes reconhecem que os governos sozinhos não são capazes de enfrentar os desafios atuais e propõem reformas estruturais para combater a desigualdade e ampliar a participação cidadã.
“A democracia é frágil se não for cuidada”, diz o texto. “Defender a democracia nestes tempos difíceis não é apenas resistir e proteger, mas propor e seguir avançando.”
Após a reunião em Santiago, os presidentes divulgaram uma declaração conjunta à imprensa e participaram de um almoço com intelectuais e representantes da sociedade civil. A expectativa é que as propostas debatidas no evento sejam levadas à próxima Assembleia Geral da ONU, em Nova York, como parte de uma agenda comum dos países signatários.