Em um voto que durou quase 14 horas e surpreendeu até os mais experientes observadores do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Luiz Fux abriu uma ampla divergência no julgamento da chamada “trama golpista” envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus. Ao absolver Bolsonaro de todos os cinco crimes imputados pela Procuradoria-Geral da República (PGR), Fux não apenas contrariou os votos anteriores de Alexandre de Moraes e Flávio Dino, como também contradisse decisões que ele próprio tomou em julgamentos anteriores relacionados aos atos de 8 de janeiro de 2023.
O voto que virou o jogo
Fux iniciou sua manifestação com críticas à condução do processo, alegando cerceamento de defesa e excesso de provas — um “tsunami de dados”, como definiu. Segundo ele, o volume de informações (mais de 70 terabytes) comprometeu o direito dos réus à ampla defesa. O ministro também sustentou que o STF não teria competência para julgar o caso, já que a maioria dos réus não possui foro privilegiado.
“Estamos julgando pessoas que não têm prerrogativa de foro. Isso banaliza a competência constitucional do Supremo”, afirmou Fux, defendendo que o caso fosse remetido à primeira instância ou, alternativamente, ao plenário da Corte.
Bolsonaro: da liderança à absolvição
O ponto mais polêmico do voto foi a absolvição total de Jair Bolsonaro. Fux argumentou que não há provas de que o ex-presidente tenha participado diretamente dos atos golpistas ou que tenha ordenado qualquer ação violenta. Para ele, os discursos de Bolsonaro contra o sistema eleitoral não configuram crime, mas sim “críticas políticas dentro do exercício da liberdade de expressão”.
“O simples desejo de mudança no sistema de votação não pode ser considerado narrativa subversiva”, disse o ministro. Ele também minimizou o impacto da chamada “minuta do golpe”, classificando o documento como uma “carta de lamentações” sem força executória.
Sobre o plano “Punhal Verde e Amarelo”, que previa o assassinato de autoridades como Alexandre de Moraes, Lula e Geraldo Alckmin, Fux foi categórico: “Não há nenhum elemento que identifique ciência do ex-presidente em relação ao plano.”
Condenações pontuais e absolvições amplas
Dos oito réus, apenas dois foram condenados por Fux: o tenente-coronel Mauro Cid e o general Walter Braga Netto, ambos pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Segundo o ministro, Cid teve envolvimento direto no financiamento de atos violentos e conhecia o plano de assassinato de autoridades. Já Braga Netto teria participado do planejamento e financiamento da operação “Copa 2022”, considerada por Fux como ato executório da trama golpista.
Os demais réus — Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira, Almir Garnier e Alexandre Ramagem — foram absolvidos de todos os crimes. No caso de Ramagem, Fux ainda votou pela suspensão completa da ação penal, acolhendo decisão anterior da Câmara dos Deputados.
Contradições e repercussões internas
A guinada de Fux gerou desconforto entre os demais ministros da Primeira Turma. Durante a leitura do voto, os colegas mantiveram os microfones desligados e evitaram contato visual, em um protesto silencioso. A ministra Cármen Lúcia e o presidente da Turma, Cristiano Zanin, ainda devem votar, com sessões previstas até sexta-feira (12).
Juristas e analistas políticos apontaram contradições no posicionamento de Fux. Em julgamentos anteriores, o ministro havia votado pela condenação de mais de 600 réus por crimes semelhantes, inclusive validando a competência do STF. Agora, defende a nulidade do processo e a incompetência da Corte.
“Fux foi contraditório com ele próprio. O punitivista de ontem virou garantista hoje”, afirmou o professor Marcelo Crespo, da ESPM-SP.
Impacto político e jurídico
O voto de Fux reacendeu esperanças entre aliados de Bolsonaro, que já começaram a explorar trechos da manifestação nas redes sociais. Parlamentares bolsonaristas comemoraram a divergência, vendo nela uma “fresta jurídica” para futuras revisões da sentença.
Analistas políticos avaliam que, mesmo sendo voto vencido, Fux forneceu poderosos argumentos para a narrativa bolsonarista de “perseguição política” e pavimentou o caminho para futuras tentativas de anulação ou revisão das condenações, especialmente se houver uma mudança no cenário político após as eleições de 2026.
Segundo especialistas, se outro ministro acompanhar Fux na absolvição de Bolsonaro, será possível recorrer ao plenário do STF por meio de embargos infringentes. Caso contrário, o voto de Fux será vencido, mas poderá servir como base para revisão criminal no futuro — especialmente se houver mudança na composição da Corte após as eleições de 2026.
“Com a atual composição, é difícil imaginar uma reversão. Mas se a direita vencer em 2026 e indicar novos ministros, tudo pode mudar”, avaliou o jurista Thiago Bottino, da FGV.
Fux e o bolsonarismo: aproximação estratégica?
O voto de Fux foi recebido com euforia pelas defesas e aliados de Bolsonaro. O advogado Celso Vilardi, que coordena a defesa do ex-presidente, classificou o voto como “ótimo” e “técnico”. “Ele acolheu 100% dos argumentos da defesa”, comemorou. Nas redes sociais, parlamentares bolsonaristas e apoiadores compartilharam trechos do voto, enaltecendo Fux.
A postura de Fux foi vista por muitos como uma tentativa de marcar posição política. O ministro, indicado ao STF por Dilma Rousseff em 2011, já foi citado em mensagens da Lava Jato como aliado da operação. A famosa frase “In Fux we trust”, atribuída a Sergio Moro, voltou a circular entre bolsonaristas após o voto.
Apesar de não ter reconhecido formalmente o plágio de trechos de obras jurídicas no passado, Fux enfrentou críticas sobre sua credibilidade acadêmica. Agora, sua mudança de postura no julgamento da trama golpista levanta questionamentos sobre sua coerência jurídica e independência institucional.
Um voto que muda o jogo
O voto de Luiz Fux não deve impedir a condenação de Bolsonaro, mas muda o tom do julgamento. Ao abrir divergência, o ministro rompe com a hegemonia de Alexandre de Moraes e reacende o debate sobre os limites da atuação do STF, a politização da Justiça e o futuro da democracia brasileira.
Mais do que um voto técnico, a manifestação de Fux é um gesto político — e, como tal, terá desdobramentos que vão muito além das páginas do processo.