Enquanto o governador Rafael Fonteles (PT) anuncia um investimento de mais de R$ 1 bilhão para combater a pior seca dos últimos dez anos no Piauí, que já colocou 125 municípios em situação de emergência reconhecida pelo governo estadual, a Prefeitura de Regeneração decidiu investir mais de R$ 1 milhão na contratação de duas atrações musicais para o aniversário da cidade, marcado para 1º de dezembro.
O município prepara a comemoração dos seus 143 anos com um espetáculo de R$ 1.015.000 em cachês para duas atrações: a banda Seu Desejo (R$ 450 mil) e o cantor Henry Freitas (R$ 565 mil). O contrato é legal. A controvérsia, no entanto, é ética e política, escancarando um abismo entre a realidade técnica e a narrativa oficial da prefeitura.
A decisão ocorre apesar de Regeneração estar incluída no decreto estadual que reconhece a estiagem como grave e autoriza medidas emergenciais para garantir abastecimento de água e assistência às famílias afetadas.
O cenário é crítico
Um boletim da Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Semarh) atesta seca grave em 100% do território de Regeneração. Em 17 de novembro, o governo estadual atualizou seu decreto de emergência, incluindo expressamente a cidade entre as 125 do Piauí em situação de calamidade climática. A medida é um reconhecimento oficial de que a população local sofre com “escassez de água comum”, perdas agrícolas e necessidade de medidas emergenciais como carros-pipa e cisternas.
A defesa da Prefeitura: Contradições
Para justificar os gastos, a prefeitura emitiu uma nota de esclarecimento. O texto, no entanto, é cheio de controvérsias. Nele, a gestão afirma, com precisão técnica, que “não decretou estado de emergência” municipal.

Tecnicamente, é verdade que não houve decreto municipal, mas Regeneração está incluída no decreto estadual que reconhece a seca grave e garante acesso a recursos emergenciais. A mensagem subjacente, porém, é a de que a situação está sob controle e não configura uma crise que demandaria prioridade absoluta.
A nota também argumenta que:
1- Há uma lei municipal que obriga a realização da festa.
2 – “Recursos para cultura ou de emendas não podem ser utilizados para pagamento de salários ou custeio de insumos, por proibição legal”.
O primeiro ponto cria uma obrigação política, mas esbarra no princípio da realidade orçamentária: nenhuma lei pode obrigar um gasto se não houver disponibilidade financeira sem sacrificar serviços essenciais.
A nota de esclarecimento da prefeitura afirma que existe uma lei municipal que obriga a realização do evento. Mas, se não houver recursos suficientes para custear uma festa milionária, o prefeito ainda será obrigado a cumprir a lei?”
Todo ano o município é obrigado a fazer uma festa de R$ 1 milhão no dia 2 de dezembro?
Nenhuma lei pode criar dinheiro do nada.
Já o segundo ponto revela uma falácia no argumento. Os extratos dos contratos nº 121/2025 e 122/2025, assinados ente 04 de julho e 06 de agosto de 2025, obtidos por esta reportagem, mostram que a fonte do pagamento dos shows não são recursos de cultura ou emendas. Clique e veja os extratos dos contratos que somam R$ 1.015.000, firmados com o cantor Henry Freitas e a banda Seu Desejo.
A origem do dinheiro está claramente listada: FPM (Fundo de Participação dos Municípios), ICMS, Conta Movimento e outros recursos, normalmente (taxas, impostos, rendimentos), o contrato não lista dinheiro de emendas parlamentares, isso teria que estar explicitamente mencionado.
Em outras palavras, a nota cria uma narrativa para justificar a festa, mas os documentos revelam que a fonte é dinheiro livre do município, que poderiam ser direcionado para outras prioridades mais urgentes — como enfrentar a estiagem ou resolver problemas crônicos, a exemplo, os atrasos salariais dos funcionários do hospital municipal de Regeneração.
A flexibilidade do FPM

O FPM é uma transferência constitucional da União aos municípios, uma verba de natureza não vinculada. Diferentemente de recursos da saúde ou educação, que têm gastos mínimos obrigatórios, o FPM pode ser aplicado em diversas áreas a critério do prefeito, desde cultura até iluminação pública ou aquisição de máquinas, desde que respeitados os mínimos constitucionais.
Ou seja: juridicamente, o prefeito Seu Dua não cometeu ilegalidade ao direcionar parte do FPM para os shows. Politicamente, no entanto, a decisão significa que, em meio a uma emergência hídrica reconhecida pelo Estado, a administração municipal optou por priorizar o entretenimento em detrimento de potencialmente reforçar ações de combate à seca com esses mesmos recursos.
O silêncio
Procurado por diversos veículos para explicar a contradição entre o decreto estadual e a negação de uma crise local, o prefeito Seu Dua não respondeu aos questionamentos. O silêncio amplifica a percepção de que a nota oficial é mais um instrumento de defesa política do que um esclarecimento transparente à população.
Ao negar a emergência municipal e o decreto estadual, a prefeitura passa a mensagem de que não precisa da ajuda extra que o governador Rafael Fonteles e a união oferecem. Enquanto isso, na prática, o Estado segue incluindo Regeneração no mapa da crise e destinando recursos de seu bilhão de reais para amenizar sofrimentos que a gestão local parece relutante em admitir.
É legal gastar R$ 1 milhão em shows com FPM? Sim. É legítimo fazê-lo quando o governo do Estado, baseado em dados técnicos, declara que sua cidade está em emergência devido a uma seca devastadora? Essa é a pergunta que ecoa.
Enquanto os holofotes se acendem para Seu Desejo e Henry Freitas no dia 1º de dezembro, na vida real, muitos regenerenses, Principalmente os que vivem na zana rural do município, estão diante de um palco muito mais árido: poeira, escassez e incerteza. Essa é a Regeneração de dezembro.



